Amanda Ritter Stoffel1
Débora Schardosin Ferreira2
Diego Souza Marques3
Geraldo Magela Campani Figueiredo4
Helena Bonetto5
Ludmar Matos6
Palmo Celestino Ribeiro Franco7
Rafael Arenhaldt (orientador)8
Thiago Ingrassia Pereira (orientador)9
Yara Paulina Cerpa Aranda10
Resumo
Os Cursos Pré-Vestibulares Populares (PVPs) são uma realidade no cenário educacional de nosso país, pois em praticamente todo o território nacional há registro da organização e desenvolvimento de cursos preparatórios ao vestibular que, além disso, trabalham a partir de princípios de educação popular, buscando formar sujeitos críticos. Nesse cenário, o Programa Conexões de Saberes/UFRGS definiu como um de seus territórios o PVP Esperança Popular, no bairro Restinga em Porto Alegre/RS, com o objetivo de fomentar a democratização do acesso ao ensino superior. Neste artigo procuramos discutir um problema que nos desafiou em nosso trabalho no ano de 2006: a evasão dos alunos em nosso cursinho. Assim, buscamos compreender as causas e motivações desse problema. Para a execução dessa proposta, realizamos pesquisa bibliográfica sobre o tema e entrevistas semi-estruturadas com os alunos evadidos. Os resultados apontam que a evasão está ligada à fragilidade do vínculo dos alunos com o cursinho, seja por suas condições materiais, pela falta de uma “cultura universitária” ou pelo caráter embrionário da experiência no bairro e na Associação de Moradores.
Palavras-Chaves: Pré-Vestibular Popular; Vestibular; Evasão.
Os vestibulares não estão baseados no conteúdo que o aluno recebe da rede pública. Os vestibulares estão baseados no que os cursinhos caros fornecem para quem pode pagar. Esse vestibular é desonesto, ele não pode se basear no que os cursinhos caros oferecem, tem que se basear em outros saberes.
(Frei David)
Introdução
Nas últimas duas décadas o crescimento e o desenvolvimento imposto a qualquer custo pela Nova Ordem Mundial têm alterado significativamente o quadro educacional brasileiro. Na década de 1990 particularmente, os programas voltados à educação tiveram maior preocupação em responder a dados quantitativos impostos pela ONU/Banco Mundial do que desenvolver propostas efetivas e mais adequadas à realidade brasileira. Como resultado de uma série de políticas equivocadas, além da imensa quantidade de diplomas do ensino médio distribuídos sem a devida qualidade de ensino, poucas ações foram realizadas em prol da melhoria na qualidade e democratização do ensino.
Não é por mera coincidência ou por simples acaso que na década de 1990 há uma explosão na demanda por ensino superior. A partir deste momento passou-se a questionar enfaticamente a estrutura elitista e racista do ensino superior brasileiro que é fruto de um processo que historicamente vem negando esses espaços às camadas populares e grupos sociais marginalizados.
Como resposta a essa demanda frente à ausência de diversidade nas nossas universidades e levando em consideração os problemas e as questões que se apresentam como desafios para a construção de uma sociedade mais justa, já que a atual nega direitos e oportunidades para parcelas significativas da população brasileira (o que acontece desde a colonização e atinge preferencialmente alguns grupos sociais como os negros e índios), organizaram-se e continuam organizando-se vários movimentos sociais (NASCIMENTO, 1999).
Nesse sentido, os Cursos Pré-Vestibulares Populares (PVPs) vêm se constituindo em importantes espaços de reflexão, organização política e mobilização social das classes populares na luta pelas políticas universais em educação e, especificamente, do acesso ao ensino superior. Este artigo se insere em um esforço de reflexão acerca dos dilemas e possibilidades que se apresentaram, no ano de 2006, na execução do Pré-Vestibular Esperança Popular, no bairro Restinga em Porto Alegre/RS, um dos territórios de atuação do Programa Conexões de Saberes/UFRGS. Compreendemos que o Esperança Popular se insere neste contexto de luta pela democratização do acesso ao ensino superior e, como fenômeno historicamente situado, sofre o impacto do contexto atual de redefinições da esfera pública e de aumento da exclusão social.
Pontualmente, estaremos discutindo o problema da evasão de nossos alunos ao longo das atividades do cursinho, pois, pela sua relevância em termos quantitativos, nos sentimos desafiados a encontrar suas causas e buscar alternativas para a sua superação, bem como a refletir sobre suas conseqüências para o desenvolvimento do nosso trabalho.
Dessa forma, depois de contextualizarmos os PVPs, destacando suas características, limites e potencialidades, focamos nosso estudo no PVP Esperança Popular, apresentando seu contorno social (Bairro Restinga). Em seguida, discutimos a questão conceitual da evasão, buscando implicá-la na realidade dos PVPs. Por fim, analisamos as entrevistas realizadas com os alunos evadidos do cursinho com o objetivo de, a partir da escuta dos entrevistados, tecermos algumas considerações que nos ajudem a qualificar nossa prática.
1. O que são PVPs
Os estudos de cunho teórico acerca de possíveis definições sobre o fenômeno dos PVPs são ainda muito incipientes e são formulados, via de regra, a partir das vivências de seus colaboradores. Nesse sentido, mais do que definirmos o que seja um cursinho popular, o que contrariaria a essência desse movimento que se produz em seu fazer cotidiano, tentaremos apresentar alguns aspectos que nos ajudam a entender o que não devem (deveriam) ser os PVPs e, por conseqüência, o que efetivamente podem ser.
Assim, um cursinho pré-vestibular de caráter popular não pode estar economicamente inacessível às classes populares, ou seja, não deve operar dentro de uma lógica capitalista que vise o lucro. Esse aspecto, embora fundamental, não é o único capaz de explicar um PVP. Dessa forma,
além do aspecto financeiro que é fundamental para o público de classe popular, os PVPs procuram operar em uma dimensão crítica de educação, não se limitando à revisão dos conteúdos para as provas do vestibular, por mais que não possam abrir mão disso, avançando em busca de dotar o ato pedagógico de sentido dentro da realidade concreta do seu público (PEREIRA, 2007, p. 55).
Por isso, os PVPs se constituem como espaços de socialização e de troca de experiências que ultrapassam a mera preparação ao vestibular (SANGER, 2003). Nesse sentido, é comum observarmos nos programas curriculares dos cursinhos populares disciplinas como a de Cultura e Cidadania, ratificando o argumento de Nascimento (2006a, p. 1): “os cursos pré-vestibulares populares devem ser mais que mero treinamento, devem ser espaços de estudos, mas também de análises das relações sociais, de organização de alternativas e produção de propostas de democratização da educação e da pedagogia”. Em vista disso, Monteiro (1996) ratifica o desafio dos PVPs:
a proposta metodológica, ideológica e filosófica é de não apenas repassar os conteúdos programáticos do segundo grau, mas ampliar a discussão de uma proposta de transformação da sociedade [...]. Nesse sentido a educação para a cidadania é, também, um desafio e objetivo político dos “prés” (p. 58).
Depois dessas discussões iniciais, podemos encaminhar algumas definições possíveis para o que sejam os PVPs. Para Nascimento (2006b, p. 1),
esses cursos pré-vestibulares, que denominamos de Cursos Pré-Vestibulares Populares, são iniciativas educacionais de entidades diversas, de trabalhadores em educação e de grupos comunitários, destinados a uma parcela da população que é colocada em situação de desvantagem pela situação de pobreza que lhe é imposta.
Nessa mesma linha, temos também que
os cursinhos pré-vestibulares populares não visam interesses mercadológicos e possuem entre sua grade de disciplinas ênfase nas discussões sobre as relações raciais, sobre as contradições e conflitos sociais, sobre democracia, educação e outros temas. Esses cursinhos preparam estudantes que estão excluídos do sistema para melhor concorrerem pelas vagas nos concursos vestibulares (ARANDA et alli, 2006).
Dessa forma, os PVPs possuem definições genéricas e que espelham o seu caráter informal, sendo esta uma característica que marca o trabalho da maior parte dessas experiências. A partir da constatação de uma realidade objetiva de que pobres, negros, indígenas e estudantes de escolas públicas em geral apresentam muitas dificuldades para passar pelo vestibular e chegar à universidade, principalmente nas públicas, grupos de pessoas que geralmente viveram essas dificuldades, mas que, mesmo assim conseguiram entrar na universidade, se organizam e montam um espaço destinado para a revisão dos conteúdos das provas do vestibular.
Desse modo, notamos que os PVPs procuram se pautar pelos aspectos que trabalham com noções de cidadania juntamente com a preparação/revisão conteudista para as provas do concurso vestibular. Esse “duplo movimento” (PEREIRA, 2007) enseja um desafio epistemológico, ou seja, como trabalhar o conhecimento no cursinho popular?
Partindo de uma concepção de aprendizagem em detrimento da simples memorização (adestramento), os PVPs buscam trabalhar o diferente, o novo, em contraponto à pedagogia tradicional, esta assentada em aulas expositivas e sem sentido dentro da realidade do aluno. Por isso, o conhecimento deve ser trabalhado nos PVPs a partir do estabelecimento de relações humanas em uma perspectiva horizontal, ou seja, que privilegia a troca de vivências entre os envolvidos nos projetos (alunos, professores, organizadores, comunidade), tendo em vista as trajetórias de cada ente envolvido. Os próprios espaços informais nas comunidades ou até mesmo dentro das escolas onde funcionam os PVPs servem para o tensionamento das hierarquias comumente observadas na relação pedagógica tradicional.
Enfim, é fato que diversas experiências alternativas ao mercado dos cursinhos privados têm surgido na última década e mobilizado considerável número de pessoas e logística para o seu funcionamento. Segundo dados do EDUCAFRO, “estima-se que, no final de 2004, existiam mais de 1.000 cursos pré-vestibulares populares no Brasil, mobilizando de 50.000 a 100.000 pessoas” (ARANDA et alli, 2006, p. 117). Só no estado do Rio de Janeiro, mais de uma centena de cursos populares estão em atuação (NASCIMENTO, 1999), e no Rio Grande do Sul são também dezenas de iniciativas, sendo que, em Porto Alegre, treze PVPs atuaram durante o ano de 2006 (PEREIRA, 2007). No desenvolvimento dessas experiências, vamos encontrar alguns desafios que são peculiares ao seu formato e objetivo.
1.2 Problemas comuns aos cursinhos populares
A construção, viabilidade e manutenção de iniciativas sociais e educacionais alternativas como os cursinhos pré-vestibulares populares requerem um permanente esforço de seus agentes sociais. Inúmeros são os problemas enfrentados por tais iniciativas, tanto na sua concepção e construção, bem como no seu cotidiano. Neste item procuramos apresentar alguns dos problemas comuns enfrentados pelos PVPs, dos quais destacamos a partir do trabalho de Santos (2005):
Heterogeneidade dos alunos: esses cursos atendem um público totalmente heterogêneo nos seguintes aspectos: alunos que tiveram trajetórias escolares diferentes, alguns oriundos de boas escolas públicas e outros de escolas com nível inferior, todos ocupando um mesmo espaço de aprendizagem com objetivos singulares. Nesse sentido, devemos levar em conta também o fato de essas pessoas estarem em tempos de estudo diferentes, já que enquanto algumas recém terminaram seu ensino médio, outras estão há muito tempo afastadas dos estudos.
Diversidade dos formatos de construção dos vestibulares: que o vestibular é uma ferramenta de seleção que prima pelo adestramento do aluno todos sabemos. Além disso, cada universidade aplica provas totalmente diferentes, o que prejudica a preparação do aluno, pois ele pode estar muito bem preparado para um tipo de prova e não para outro. Isso surge como um desafio para os PVPs em sua organização curricular.
Sustentabilidade e recursos financeiros e materiais: a maioria desses cursos é mantida com recursos advindos dos próprios alunos que, na maioria dos casos, pagam uma taxa para cobrir as despesas, o que nem sempre é suficiente para adquirir o material necessário. Quanto à infra-estrutura, esses cursos utilizam salas de escolas, igrejas, universidades e muitas vezes associações comunitárias, que são espaços normalmente diminutos e com escassez de itens básicos como um quadro-negro e banheiros. Como o curso precisa funcionar, acaba tendo que utilizar salas não apropriadas para um bom funcionamento das aulas.
Rotatividade de professores: uma característica marcante dos cursinhos pré-vestibulares populares é a rotatividade de professores dentro de uma mesma disciplina, já que os mesmos são universitários ou professores voluntários que não podem dispor de uma carga horária elevada para a atividade. Isso reflete um aumento na dificuldade de sincronizar os conteúdos vistos em sala de aula, exigindo um grande entrosamento entre os professores de uma mesma disciplina. Como na maioria das vezes os professores não se encontram regularmente e não freqüentam os mesmos espaços, o diálogo pode tornar-se escasso ou insuficiente para garantir um bom andamento das disciplinas. Aos alunos, tal problema pode gerar repetição de certos conteúdos em detrimento de outros que acabam não sendo devidamente abordados. A mudança de enfoque ou a maneira de dar aula de cada professor pode prejudicar os estudos e gerar confusão no entendimento dos alunos, que nos PVPs são majoritariamente provenientes de um ensino público deficitário que, muitas vezes, não oferece uma boa formação básica.
Dentre os problemas enfrentados pelos cursinhos pré-vestibulares populares talvez o que mais tem causado preocupações e questionamentos no que tange à função social de tais iniciativas é a evasão dos alunos. Dentro destas preocupações com a evasão incluímos a desmotivação de educadores e alunos, de seus agentes sociais e instituições envolvidas. Contudo, antes de discutirmos a questão conceitual da evasão, vamos situar a experiência do PVP Esperança Popular, pois as próprias causas da evasão podem estar associadas às vivências e ao contexto social que influencia e é influenciado pelo cursinho.
2. Situando o Pré-Vestibular Esperança Popular
2.1 O bairro Restinga
O bairro Restinga localizado a 23 quilômetros do centro de Porto Alegre, possui uma população de mais de 50 mil habitantes, segundo o Censo de 2000 (IBGE). Porém esse dado pode ser questionado, já que, devido a grande área de ocupação na Restinga, existe uma população “que não consta no mapa” e não entra nas estatísticas, pois relatos da comunidade local dão conta que são mais de 100 mil pessoas que moram no Bairro. Segundo o Observatório de Porto Alegre1 a população do bairro Restinga é de 53.764 habitantes, representando 3,95% da população do município. Com área de 38,56 km², representa 8,10% da área do município, sendo sua densidade demográfica de 1.394,29 habitantes por km². A taxa de analfabetismo é de 6,0% e o rendimento médio dos responsáveis por domicílio é de 3,6 salários mínimos. De acordo com o Censo de 2000 (IBGE) a Restinga é o sexto bairro mais pobre da capital. Surgiu em meados da década de 1960, a partir de uma política de “limpeza” do centro, chamada “Remover para promover”. Os moradores de vilas na região central foram despachados para a zona sul de Porto Alegre, numa área sem nenhuma infra-estrutura.
2.2 O Curso Pré-Vestibular Esperança Popular
É nesse ambiente que se desenvolve a presente ação de extensão do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular, inserida junto ao Programa Conexões de Saberes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tal ação é constituída em parceria com a Associação de Moradores Núcleo Esperança I. O cursinho surgiu da antiga demanda da comunidade e da Associação, visto a dificuldade de acesso a cursos pré-vestibulares da região central e à precariedade do ensino público. As aulas são ministradas na própria Associação, iniciativa que propicia um estreitamento da relação Comunidade/Associação, fazendo do curso popular um local de espaço de luta pela democratização pelo acesso à universidade. Pela característica do programa Conexões de Saberes/UFRGS em ouvir a comunidade e conviver com ela, a entrada do bairro Restinga como um dos territórios do programa ocorreu devido às demandas existentes na comunidade e também pelo objetivo de potencializar a conexão entre o saber popular e o científico.
A ação de extensão acontece desde março de 2006, tendo como objetivo geral construir formas de democratização do acesso à universidade pública, integrando todos os envolvidos - professores voluntários, professores bolsistas do Programa Conexões de Saberes/UFRGS, integrantes da Associação de moradores, alunos e demais pessoas da comunidade – na construção e desenvolvimento do Cursinho Esperança Popular.
Entre os objetivos específicos do PVP Esperança Popular, podemos destacar: a) refletir o que é educação popular, problematizando a lógica da educação tradicional; b) construir uma relação efetiva e contínua entre comunidade-associação-universidade; c) discutir sobre o acesso e inserção na universidade; d) afirmar o dever dos estudantes da universidade pública em retornar à sociedade o conhecimento obtido.
Dessa maneira, verificamos que é necessária uma reflexão sobre como a educação popular entra na discussão acadêmica. Também, pensamos como estas representações populares se edificam no meio acadêmico e qual a real representatividade dos saberes populares na universidade. Concomitantemente, buscamos criar vínculos acadêmicos permanentes com a comunidade da Restinga, reduzindo o distanciamento dos universos culturais envolvidos. Esta contextualização nos ajuda a procurar compreender as causas e as conseqüências de um dos problemas mais significativos que afetam os PVPs, e, em especial, a experiência iniciada em 2006 na Restinga: a evasão dos alunos.
3. Evasão
Entre os problemas enfrentados pelos pré-vestibulares populares está a evasão que pode ser definida, sinteticamente, da seguinte maneira: o aluno que deixa de freqüentar o curso e não retorna mais. A evasão é um fenômeno que, segundo a literatura consultada, tendo em vista sempre o contexto do ensino formal, acontece por fatores internos e externos a escola.
Nos fatores internos podemos observar que as dificuldades de permanência de um aluno podem estar relacionadas com a estrutura da escola, incluindo a falta de materiais didáticos alternativos, tais como computadores, aparelho de som e de imagem que são, via de regra, precários na rede pública em nosso país. Além disso, ocorre uma tensão entre as práticas pedagógicas e a realidade do aluno, pois geralmente o ensino é teórico-abstrato, e por isso o aluno não consegue visualizar onde pode utilizar o conhecimento ensinado a ele, caracterizando a desvinculação entre teoria e ação.
Por outro lado, a avaliação é um dos fatores que também contribui com o fenômeno da evasão. Para Ferreira (1983), quando essa prática tem o caráter de simplesmente descobrir falhas e acertos se mostra inadequada, negligenciando, segundo Cordal (2000), as características que podem ser próprias de cada aluno. O processo avaliativo pode provocar a repetência que, de acordo com Torres (2000), gera nos alunos uma necessidade de “começar de novo”, o que criaria um sentimento de desperdício de tempo e de recursos.
Por sua vez, o professor criaria expectativas em relação aos seus alunos que ao longo dos meses não são correspondidas, podendo influenciar no modo em que serão ministradas as aulas. Nesse sentido, podemos ver então que, para Bourdieu (apud QUEIROZ, 2002, p.5), “os professores partem da hipótese de que existe, entre o ensinante e o ensinado, uma comunidade lingüística e de cultura, uma cumplicidade prévia nos valores, o que só ocorre quando o sistema escolar está lidando com seus próprios herdeiros”. Este descaso com as diferenças de cada aluno pode ser visualizado na forma de avaliação do professor que acaba, muitas vezes, por excluir aquele aluno que não alcança resultados satisfatórios.
No que tange aos fatores externos à escola, o primeiro ponto a ser destacado é a relação com o grau de escolaridade da família, principalmente da mãe. Torres (2000) argumenta que famílias com baixa escolaridade tendem a ver a escola como sinônimo de “disciplina”, que exclui indivíduos incapacitados para se enquadrar nesses aspectos (lógica meritocrática). Assim, essas famílias tendem a ver a desistência dos jovens como sinal de uma suposta “alta qualidade escolar”, entendendo que seus filhos não possuem “capacidade” para acompanhar o processo escolar. Alguns especialistas da área educacional, contudo, tendem a associar o mesmo fenômeno à baixa qualidade do sistema escolar, deslocando a “culpa” do indivíduo para o sistema como um todo.
Segundo o Programa de Estudos Conjuntos de Integração Econômica da América Latina - ECIEL - (apud QUEIROZ, 2002, p. 3) "o fator mais importante para compreender os determinantes do rendimento escolar é a família do aluno, sendo que, quanto mais elevado o nível da escolaridade da mãe, mais tempo a criança permanece na escola e maior é o seu rendimento”, ratificando o discutido por Torres (2000).
Outros aspectos que são atribuídos a causas externas são: o trabalho doméstico infantil, como o cuidado com irmãos mais novos para os pais poderem trabalhar, a baixa renda familiar e as condições estruturais dos bairros periféricos. Assim, o fracasso escolar nas camadas populares, segundo ARROYO (apud QUEIROZ, 2002, p.3), liga-se a
essa escola das classes trabalhadoras que vem fracassando em todo lugar. Não são as diferenças de clima ou de região que marcam as grandes diferenças entre escola possível ou impossível, mas as diferenças de classe. As políticas oficiais tentam ocultar esse caráter de classe no fracasso escolar, apresentando os problemas e as soluções com políticas regionais e locais.
Dessa forma, a questão de classe é importante para a qualidade da formação do estudante, influenciando suas possibilidades de ascensão escolar. Nesse sentido, o estudo desenvolvido por Meksenas (1991) sobre a escola brasileira, discute a realidade dos alunos dos cursos noturnos, apontando que a evasão escolar ocorre em virtude da necessidade deles trabalharem para sustento próprio e da família, combinando o trabalho e o estudo em uma jornada desgastante.
Diante da exposição destes fatores externos e internos podemos começar a nos questionar sobre sua validade no contexto dos PVPs, levando em consideração que o espaço de aprendizagem é diferenciado por sua proposta de ensino, pois, sabemos, que na escola básica (foco da lietratura consultada) a freqüência é obrigatória para a aprovação, ao passo que no cursinho popular o mesmo não se observa. O que leva o aluno a desistir do cursinho popular? Quais os fatores que contribuem para sua desistência? Estas perguntas infelizmente ainda não foram abordadas pela literatura existente, mas são perguntas que estão presentes no nosso cotidiano e na tentativa de começar a respondê-las optamos por perguntá-las aos alunos evadidos do Pré-Vestibular Esperança Popular.
4. Do percurso metodológico
Por sermos um grupo2 heterogêneo de pesquisa, optamos por um método de trabalho no qual foi possível compartilhar de todas as áreas do conhecimento, por meio de discussões acerca dos cursinhos pré-vestibulares populares e educação popular, lançando mão de algumas leituras de textos que tratam do assunto, para nos situarmos no tema. Apesar da experiência prática de todos como professores, precisávamos de uma formação teórica e metodológica para realizar a escrita do artigo. É importante lembrar que os integrantes do grupo estão diretamente envolvidos com o Curso Pré-Vestibular Esperança Popular, pois em sua maioria são professores e alguns são coordenadores de território junto ao Programa Conexões de Saberes/UFRGS.
Depois de algumas reuniões, foi acordado que trataríamos da evasão dos alunos como principal problema de pesquisa. Esse é um assunto que engloba grande parte dos PVPs por ser um problema comum e esta reflexão poderia ser útil a todos eles. Definido o problema, era chegada a hora de delimitar o universo de pesquisa. Inicialmente foi estipulado pelo grupo que para compreender o fenômeno da evasão era necessário entrevistar todas as partes envolvidas, ou seja, alunos evadidos, professores e membros da associação. Contudo, a ida a campo impôs uma nova ordenação e foi necessário optar apenas por entrevistar os alunos evadidos.
Antes da ida a campo, o grupo realizou uma pesquisa exploratória acerca da produção a respeito de cursos PVPs e do fenômeno de evasão, sendo escrito o corpo teórico com a participação de todos os membros do grupo de pesquisa e, posteriormente, foi construído o instrumento de pesquisa, que resultou num roteiro de entrevista com quatorze questões. Do total de 35 evadidos somente foi possível chegar a oito entrevistas, por uma série de dificuldades que uma ida a campo comumente coloca: não localização dos ex-alunos, colisão de horários e o fator tempo de conclusão do trabalho.
Feitas as entrevistas, todas as questões foram dividas entre os pesquisadores para análise e, posteriormente, sistematizadas para tornar possível uma análise orgânica entre a sistematização das entrevistas (perspectiva captada por cada pesquisador) e a base teórica discutida.
O roteiro de entrevista procurou possibilitar que o entrevistado, de certa forma, avaliasse o PVP em questão para que assim pudéssemos apreender as prováveis causas da evasão. Para isso, foram elaboradas questões nas quais o entrevistado pudesse, por exemplo, apontar os aspectos positivos e negativos do PVPs. A seguir, realizaremos a análise das entrevistas.
5. Da análise das entrevistas
Para a análise das entrevistas, estabelecemos o perfil dos alunos entrevistados que pode ser visualizado no quadro abaixo:
PERFIL DOS ENTREVISTADOS
Nota metodológica: Um fato a ser destacado refere-se à situação do aluno Carlos Eduardo de Souza Rodrigues, já que no percurso do trabalho de pesquisa descobrimos que ele manteve freqüência em somente duas disciplinas (Matemática e Língua Portuguesa) até o final do curso, fato que originou sua exclusão para fins da análise que procedemos.
Temos, a partir de um levantamento feito por meio das fichas de inscrição do cursinho, o número total de 35 alunos que iniciaram em maio, sendo que destes, 85,71% evadiram (cinco alunos terminaram o curso em dezembro). Os alunos entrevistados são, em sua maioria, negros e mulheres, possuindo idades variadas, sendo que duas pessoas têm mais de 40 anos e terminaram o ensino médio por meio de supletivo ou EJA, no restante, observamos que a faixa de idade se mantém entre 17 e 25 anos, estando eles com o nível médio concluído ou em fase de conclusão (alunos do 3° ano). Além disso, para freqüentar o cursinho, o aluno deveria estudar ou ter estudado exclusivamente em escola pública.
Para criar um caminho consistente em busca das prováveis causas da evasão, as entrevistas realizadas procuraram traçar um panorama que (re)criasse a percepção que o próprio entrevistado tinha a respeito da realidade na qual estava inserido. Para isso foi fundamental saber se os sujeitos envolvidos tinham ciência e qual o alcance dessa compreensão a respeito do caráter do cursinho que freqüentaram, ainda que por um curto período. Assim, vamos analisar as respostas dos entrevistados considerando seu perfil e a base teórica trabalhada anteriormente.
Em relação ao desempenho escolar, os alunos entrevistados, em sua maioria, demonstraram satisfação com o seu desempenho. O que chama a atenção é que esta satisfação foi associada à aprovação, notas boas e em dois casos ter apenas uma reprovação no ensino médio. Isso reflete a lógica hegemônica do ensino médio público do nosso país que prima pela aprovação em massa de alunos. Assim, esses estudantes apresentam dificuldades para disputar uma vaga em alguma instituição pública de ensino superior, pois estas exigem um conhecimento que está muito além do que esses alunos adquiriram na vida escolar.
Interessante observar que nenhum dos alunos entrevistados citou a palavra conhecimento quando falaram sobre seu desempenho escolar, mas quando tiveram que explicar o porquê de terem procurado o Esperança Popular apareceu a questão da busca por mais conhecimento. Neste ponto fica claro que, para os alunos, o cursinho preencheria lacunas deixadas pelas suas escolas onde a maioria deles acreditou que teve um bom desempenho.
Os alunos entrevistados colocam como objetivo o acesso à universidade, visando esse caminho no intuito de uma perspectiva de melhorar sua realidade, melhoria de seus empregos e uma estabilidade financeira. Visam, enfim, reconhecimento e prestígio social (valor simbólico) por estudar na universidade.
Na tentativa de verificar se a falta de tempo e a disposição para o estudo fora do horário de aula influenciaram na evasão, foi perguntado aos entrevistados se eles conseguiam estudar nesse tempo fora do cursinho. Dos sete entrevistados, três declararam que trabalhavam durante o período em que participaram do cursinho e quatro declararam que não. Apenas um relatou não estudar fora do horário de aula, mesmo tendo tempo para isso. A falta de tempo pareceu ser a questão principal para a pouca disposição e o escasso estudo fora da sala de aula.
Os ex-alunos entrevistados destacaram como pontos positivos no Pré-Vestibular Esperança a dedicação dos professores ao lecionar, a proximidade entre aluno e professor facilitando a resolução de dúvidas e o aprendizado, as amizades adquiridas, a localização próxima da residência dos alunos e a facilidade na questão financeira, já que a taxa cobrada era muito inferior, se comparada com cursos pré-vestibulares não populares (mercantis). O cursinho ganha, dessa forma, um caráter social devido a sua baixa mensalidade, tornando-se acessível para aqueles que precisam, pois as mensalidades não visam lucros, mas, apenas a manutenção do próprio curso e do espaço utilizado.
Também foi indagado quais os pontos negativos do cursinho e, dos sete entrevistados, cinco apontaram a falta de infra-estrutura como principal deficiência do PVP Esperança. Como o cursinho está localizado em uma Associação de Moradores (que não é um espaço escolar tradicional), os entrevistados apontaram problemas de iluminação, bancos desconfortáveis e até mesmo o frio no inverno.
Foi perguntado,além disso, aos entrevistados qual a maior dificuldade de se manter no cursinho. Não houve unanimidade, poderíamos tentar classificar em três as dificuldades apresentadas: a violência do bairro, a estrutura do local de ensino e a não priorização do cursinho. A violência do bairro foi o motivo apresentado por duas entrevistadas. Para uma delas este foi o motivo central para sua evasão do cursinho. Apesar da estrutura do local de ensino ter sido mencionada por duas entrevistadas, não houve menção de este ter sido o motivo de evasão. Outro fator apontado foi o que denominamos de “não priorização do cursinho”, que é um aspecto recorrentemente observado por quem tem trabalhado com cursinhos populares. Isso vai ao encontro do perfil de aluno que procura o cursinho, que se trata de um público que pode evadir por dificuldades econômicas (que o levam a abandonar o curso por um emprego), falta de uma cultura de universidade, baixa auto-estima, etc.
Uma pergunta que a primeira vista pode parecer desnecessária traz informações interessantes. Foi perguntado aos entrevistados se no fim das contas haviam realizado vestibular. Dos sete entrevistados, simplesmente cinco não realizaram vestibular e dois passaram por um processo seletivo em universidades privadas. Esse dado chama a atenção porque demonstra que o objetivo que levou essas pessoas a procurarem o curso no início do ano não se manteve até o período das provas.
Dos entrevistados, três pessoas declaram que perceberam um caráter de movimento social nas atividades do PVP Esperança Popular, sendo que uma fazia parte da associação e da organização do cursinho e outra era um dos educandos do ano de 2006. A situação social em que o PVP Esparança Popular estava inserida, mostra que as pessoas que procuraram o cursinho estavam em busca de uma melhor qualidade de vida do ponto de vista financeiro. Esse fator esta ligado ao problema da evasão, pelo fato de que quatro entrevistados afirmaram ter abandonado as aulas pelo fato de terem privilegiado seus empregos e cursos profissionalizantes, sendo que uma declarou que como estava no 3° ano do ensino médio já tinha o domínio dos conteúdos que estavam sendo apresentados. Ou seja, mostra a contradição que existe em uma sociedade que vê a educação como trampolim para o mercado ao mesmo tempo em que estruturalmente impossibilita determinadas camadas sociais de terem esta oportunidade.
Considerações Finais
Dessa forma, o fenômeno da evasão é recorrente nos PVPs e pode possuir muitas origens desde fatores internos do curso, tais como: o corpo docente ser formado em sua maioria por professores que ainda não estão formados, pela falta de estrutura dos espaços onde são realizadas as aulas, pela falta de material didático específico para o vestibular, pelos conteúdos que não fazem parte do cotidiano dos alunos. E por fatores externos: como a falta de tempo para complementar os estudos por parte dos alunos, pela falta de dinheiro para pagar a taxa cobrada para prestar as provas do vestibular, o desemprego do aluno e seus familiares ou o aluno que arrumou um emprego novo e até mesmo pela violência do bairro.
Portanto, o que transpareceu ao longo do nosso trabalho de campo e da reflexão teórica que empreendemos sugere que a universidade apresenta-se para os alunos evadidos de nosso cursinho como um instrumento para melhoria de suas condições de vida. Contudo, os problemas pertinentes a sua condição social que, adicionados aos problemas estruturais do PVP Esperança, acabam influenciando no seu processo de desligamento do curso.
Soma-se a isso a fragilidade observada na relação entre o aluno e o cursinho, já que esse não tem a “cultura universitária”, ou seja, em suas relações cotidianas, os estudos em nível superior aparecem como algo distante. A própia experiência do PVP Esperança Popular é pioneira no bairro, pois até então nenhuma experiência similar havia sido constituída na Restinga. Por isso, mesmo diante do grande desafio de se trabalhar com pré-vestibular e com todos os limites apresentados em nosso trabalho, isso propiciou subsídios para uma melhor construção do cursinho neste ano, tentando minimizar os problemas que enfrentamos na implantação do projeto em 2006.
Por fim, pensando em possíveis encaminhamentos, no sentido de se estabelecer uma relação mais duradoura com a comunidade que procura o espaço do cursinho, a experiência tem nos apontado a importância do engajamento dos alunos na construção e gestão do cursinho, pois uma das metas do nosso trabalho é a participação política dos alunos. Nesse sentido, o fortalecimento da Associação de Moradores e a melhoria de seu espaço reservado para as aulas, juntamente com a adoção de material didático, são movimentos que estamos realizando atualmente na esperança de consolidação do Esperança Popular.
Referências
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CORDAL. M. L. Causas da evasão escolar nos cursos noturnos. IN: Revista da Educação Brasileira. Vol. 3. 2000. FURG. p 101-105.
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1 Fonte consultada:
2 Destacamos a presença e a colaboração do Prof. Dr. Jaime Zitkoski (FACED/UFRGS) em alguns encontros de nosso grupo de pesquisa.
1 Estudante do Curso de Ciências Biológicas e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.
2 Estudante do Curso de Geografia e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.
3 Estudante do Curso de História e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.
4 Estudante do Curso de Engenharia Elétrica e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.
5 Estudante do Curso de Ciências Sociais e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.
6 Estudante do Curso de Física e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.
7 Estudante do Curso de Engenharia Elétrica e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.
8 Doutorando em Educação e integrante da Equipe de Coordenação do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.
9 Mestre em Educação, Professor da FACED/UFRGS e integrante da Equipe de Coordenação do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.
10 Estudante do Curso de Ciências Sociais e bolsista do Programa Conexões de Saberes – UFRGS.
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