quinta-feira, 16 de abril de 2009

A Construção de Educadores no Cursinho Popular: experiências e reflexões

A Construção de Educadores no Cursinho Popular: experiências e reflexões


Aline de Abreu Andreoli1

Caroline Gonçalves Chaves2

Diego Souza Marques3

Grasiela Martini4

Juliana da Silva Arnort5

Ludmar Guedes Matos6

Thiago Goulart Prietto7

Thiago Ingrassia Pereira8


Resumo: A partir das experiências concretas de in(ter)venção pedagógica no Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, este artigo busca pensar a construção dos bolsistas do Programa Conexões de Saberes – UFRGS como educadores, retratando suas angústias, medos e conquistas neste início de caminhada no campo da educação e, em especial, no trabalho pela democratização do acesso ao ensino superior público. A sala de aula e seus contornos (espaciais e culturais) ao lado de leituras orientadas servem de esteio para o trabalho empírico e de reflexão, originário de uma práxis aberta ao desafio e carregada de esperança. Esta experiência didática e de pesquisa nos possibilita atestar o inacabamento dos sujeitos frente ao processo educativo, renovando nosso compromisso com os princípios da educação popular que tensionam as injustas assimetrias de nossa sociedade.

Palavras-Chave: Pré-Vestibular Popular; Ensino e Pesquisa; Educação Popular.






Fé na vida, fé no homem, fé no que virá

Nós podemos tudo, nós podemos mais

Vamos lá fazer o que será

Gonzaguinha


Ao vir à terra, todo homem tem direito a

que se o eduque, e depois, em troca, o dever de contribuir à educação dos demais

José Martí





Introdução: entre a prática e a teoria


Podemos perguntar a um aluno (jovem ou não) que esteja terminando o ensino médio quais são seus planos para o futuro. A resposta, muitas vezes, pode vir com um movimento de ombros acompanhado de uma expressão que mostra um ar de incerteza: “Sei lá... Até gostaria de cursar uma faculdade, mas isto não é para mim, é só para quem pode”. Observamos que o ensino superior é uma realidade que faz parte da vida de outros, daqueles que têm as condições – materiais e afetivas - exigidas pela sociedade capitalista.

Na realidade educacional brasileira esta concepção de acesso ao ensino superior se mostra comum, pois ainda poucas pessoas conseguem o ingresso em uma universidade9 e dessas um número muito inferior tem acesso à universidade pública, uma vez que o ensino gratuito e de qualidade promove uma enorme concorrência por uma vaga em seus quadros. Porém,


a diminuição das taxas de reprovação, a ampliação das formas alternativas de seriação, tal como o ensino supletivo e o sistema modular, associada à ampliação de vagas no ensino superior provocaram o aumento crescente dos candidatos ao ingresso na universidade. A criação, por seu turno, de experiências pedagógicas complementares ao sistema formal de ensino, tais como os pré-vestibulares comunitários, gera novas dinâmicas educacionais, na qual a escola é um dos elementos a mais (SILVA, 2003, p. 160).



Estas “novas dinâmicas educacionais”, onde se incluem os Pré-Vestibulares Populares, procuram tensionar a estrutura elitista do sistema educacional brasileiro, principalmente a partir da constatação de alguns déficits no ensino básico público. Assim, os cursinhos populares visam democratizar o acesso ao ensino superior que parece tão distante de uma grande parte da população brasileira, principalmente a mais pobre, negra e indígena (LEIPNITZ; PEREIRA, 2008).

Nesse contexto o Programa Conexões de Saberes destaca-se, em nível nacional, pelo fomento a iniciativas que propiciem a permanência qualificada de estudantes de origem popular nas universidades federais, atuando em pesquisa e extensão. Os cursinhos populares se configuram como uma das políticas mais incisivas no âmbito deste programa, congregando bolsistas e professores universitários com as comunidades parceiras.

Diante disso, torna-se relevante a formação dos jovens professores10 que assumem a tarefa de lecionar no cursinho popular, sendo eles estudantes de licenciatura ou não, mas ambos com a garra de futuros professores11. Os alunos-professores-bolsistas encharcam-se na prática de sala de aula e na condução da estrutura do pré-vestibular. Assim, a prática docente desafia os bolsistas, impõe medos e dificuldades, ao mesmo tempo em que abre possibilidades de uma formação profissional de qualidade.

Com base nesta discussão, buscaremos ter mais elementos para entender algumas questões com as quais nos deparamos: como ocorre a construção dos professores-alunos-bolsistas no/do cursinho pré-vestibular no bairro Restinga da cidade de Porto Alegre? Em outras palavras: o que está implicado na nossa formação de professores no cursinho da Restinga? Quais os pressupostos que orientam a nossa prática docente neste território?

Para tentar responder a estas questões, definimos dois eixos básicos e interdependentes de atuação em nosso grupo de trabalho: formação de professores e fundamentos de pesquisa social. Com isso, trabalhamos de forma integrada dois grandes desafios que se colocam aos jovens universitários, associando ensino e pesquisa. Nosso principal objetivo é nos formarmos como professores-pesquisadores, aquele professor que não apenas ensina e transmite seu conhecimento, mas aquele que reflete consigo e com o educando os resultados de suas ações didático-pedagógicas.

O professor-pesquisador traz uma característica que o diferencia dos demais colegas. Ele transforma sua docência em atividade intelectual cuja empiria (aquilo que ele observa) é fornecida por sua atividade de ensino, pela atividade de aprendizagem, pela rebeldia de alguns alunos, pela incapacidade de aprendizagem de outros devido à falta de condições cognitivas prévias, em conteúdos ou em estrutura, de condições didáticas apropriadas, ou, ainda, de carência de condições materiais (BECKER, 2007, p. 20).


Dessa forma, nosso trabalho de campo encontra a sala de aula como espaço de possibilidades, entendida como espaço privilegiado do trabalho do professor e local onde afloram dúvidas e incertezas que acompanham os primeiros passos na carreira docente. Assim, o professor-pesquisador se depara com algumas questões: que métodos usará em função do objetivo que tem em vista (BECKER, 2007) e “como um professor pode transformar sua prática sem transformar sua teoria?” (BECKER, 1998, p.47)

Tentaremos responder essas e outras questões a partir de nossa experiência concreta, lançando um olhar sensível para os limites e possibilidades que o trabalho no cursinho popular nos coloca. Para isso, o artigo está divido em três tópicos, abordando, respectivamente, o perfil dos alunos e do bairro onde o cursinho ocorre, a influência das concepções da educação popular no trabalho docente e a análise de nossas experiências em sala de aula.



A distância entre a realidade e o vestibular: ou sobre a necessidade de conhecermos com quem e onde trabalhamos


Embora uma pessoa não seja um educador até a medula, tem de conhecer não apenas as matérias que ensina, mas também a própria criança ou adolescente ao qual se dirige: em síntese, o aluno como ser vivo que reage, transforma-se e desenvolve-se mentalmente. (Jean Piaget)


Para a realização do planejamento das aulas torna-se relevante a leitura da realidade na qual vamos atuar, pois o espaço comunicativo provido de significado é essencial para o melhor aproveitamento das aulas. No nosso caso, em especial, estamos construindo uma experiência nova no bairro, pois a Restinga12, até a criação do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular iniciada em 2006, não possuía um espaço com tais características. Além disso, o Esperança Popular começou em parceria com uma associação comunitária do bairro e teve muitos altos e baixos na construção desta idéia no local (BONETTO et all, 2007), fazendo com que, ao final de 2007, ocorresse a transferência das suas atividades para uma escola pública municipal.

Assim, no ano de 2008 tivemos uma expressiva procura pelas 25 vagas ofertadas (de acordo com o espaço da sala cedida no turno da noite na escola), com 120 candidatos inscritos. Pelos critérios de seleção13, 100 candidatos foram para o sorteio público das vagas, realizado no refeitório da escola. Ressaltamos, também, que quatro ex-alunos de 2007 procuraram novamente o cursinho, tendo vaga, segundo critérios discutidos entre o grupo de professores, assegurada.

Nesse sentido, para a realização da leitura do nosso espaço de trabalho, discutiremos brevemente alguns aspectos relacionados ao perfil dos alunos do Esperança Popular. O grupo de alunos é bastante heterogêneo, formado por estudantes com históricos diferentes, apresentando diversos níveis de aprendizado durante o ensino médio. Enquanto uns recém saíram ou ainda estão cursando o ensino médio, outros já o fizeram há muito tempo.

Ao contrário do observado em outros cursinhos, principalmente nos cursinhos mercadológicos ou, nas palavras do Frei David, caros, a turma do Esperança Popular apresenta muitas mulheres e, entre elas, uma parcela expressiva de negras. Também, a média de idade é um pouco mais elevada do que a comumente observada em cursinhos.

Uma parcela significativa dos alunos tem algum trabalho durante o dia como fonte de renda, tornando o acompanhamento do curso uma tarefa muito difícil, pois requer ainda mais dedicação do que alguém que pode apenas estudar para o vestibular.

É interessante salientar que, embora aparentemente não haja, no bairro, uma história de supervalorização do estudo, enquanto suporte para ascensão social, tendo em vista o fato de que há, entre a população adulta, um baixo nível médio de escolarização, ocorre um forte incentivo para a continuidade dos estudos, ou seja, muitas mães (inclusive solteiras) buscam proporcionar aos seus filhos uma melhor condição escolar, para que estes possam seguir trajetórias distintas das suas, que via de regra, foi ou ainda são bastantes sofridas.

Houve, em anos anteriores, depoimentos de alunas acima de 50 anos que diziam terem voltado a estudar para incentivar seus filhos, para que estes arrumassem um emprego descente e não se envolvessem nas atividades ilícitas, que geralmente são oferecidas como alternativa às mentes “desocupadas” (como o tráfico de drogas, que infelizmente é bastante presente no bairro, inclusive sendo realizado até mesmo por crianças e adolescentes).

Tanto os candidatos à vaga no cursinho (cerca de 100 pessoas), como os alunos efetivamente matriculados (28) fazem parte de uma minoria, não só do bairro, bem como da sociedade. Pertencem, em sua maioria, ao grupo de pessoas que não tiveram em casa o exemplo de que “o estudo vale a pena”, pois seus pais, geralmente, não permaneceram muito tempo na escola e/ou tiveram de trabalhar muito cedo para ajudar no sustento de sua família. Ainda assim, nossos alunos, apesar de trabalharem o dia todo e de terem já, em muitos casos, famílias para sustentar, estão investindo seu disputado tempo (que seria para o marido (esposa) ou para os filhos) para dedicar-se a um cursinho popular que tem o objetivo de “prepará-los” para uma ingrata e injusta prova de vestibular que influenciará seus futuros: se passarem, terão, talvez, maiores possibilidades na vida e uma perspectiva de ascensão social; se não, continuarão a ser simples “restingueiros”14 sem futuro (conforme o pensamento que observamos entre os alunos).

Enfim, o grupo de alunos tem em comum a vontade de mudar de vida por meio do ensino universitário, acreditando que conseguirão melhores condições de vida com um curso superior, ou ainda, simplesmente querem dar continuidade aos estudos, fato observado entre aqueles que estão saindo do ensino médio.

Diante dessa caracterização do grupo de alunos, orientamos a construção de estratégias de ensino, procurando desenvolver os objetivos de um cursinho popular; entre eles, destacamos o esforço de preenchimento das lacunas deixadas por grande parte do sistema público de ensino que é, sabemos, falho em preparar os seus alunos para a realização de um concorrido vestibular.

Esta contradição entre a exigência do vestibular e as possibilidades de preparação dos segmentos populares, é expressa no fato de que os alunos chegam até o cursinho com um déficit muito grande em relação ao que devem aprender para ingressar na universidade, via vestibular. A experiência mostra que, muitas vezes, é necessário mais de um ano para que um aluno de um cursinho popular consiga ser aprovado no vestibular, podendo, se não trabalhado devidamente, ser deletério para a já fragilizada auto-estima dos alunos. Por outro lado, nos permite construir laços mais consistentes por meio da troca de informações e vivências, pois acima do vestibular está a vida em si, por isso buscamos trabalhar no cursinho com os princípios da educação popular e libertadora.



O desafio da Educação Popular no cursinho popular


Educação popular não é aquela que transmite o que a educação do sistema lhe pede, mas aquela que vive de mãos dadas com o povo, envolvida e comprometida com suas preocupações, seus problemas (BRANDÃO apud MONTEIRO, 1996, p. 66).


Conforme foi tratado em outro trabalho de pesquisa (BONETTO et all, 2007), os cursinhos populares não apenas trabalham com os conteúdos do vestibular, mas procuram associar estes conteúdos às experiências cotidianas de seus alunos, adotando princípios de educação popular, inclusive para enfrentar problemas como a alta evasão de alunos. Este “duplo movimento” (PEREIRA, 2007) buscado pelos cursinhos populares é algo complexo e exige compromisso político e qualificação técnica de seus professores.

Educação popular pode ser definida, a partir de Paulo Freire, como um movimento de engajamento daqueles que pretendem impulsionar modificações nas atuais estruturas de ensino do país. Nadando contra a maré, a educação popular se constitui como um contraponto ao regime de elite do ensino, em todos os seus âmbitos. Ela ambiciona desenvolver perspectivas para conscientizar todos os indivíduos que se encontram fora do status regular de ensino, com o intuito de proporcionar uma movimentação, um deslocamento das plataformas que mantêm a tradição de privilégio deste.

Nesse sentido, convergimos no entendimento de que

em síntese, para Freire, a expressão educação popular designa a educação feita com o povo, com os oprimidos ou com as classes populares, a partir de uma determinada concepção de educação: a educação Libertadora [...]. Esta educação, orientada para a transformação da sociedade, exige que se parta do contexto concreto/vivido para se chegar ao contexto teórico, o que se requer a curiosidade, o diálogo, a vivência da práxis e o protagonismo dos sujeitos (PALUDO, 2008, p. 158-9).


Os cursinhos populares, ao nadar contra a maré, revertem este processo de privilégios. Tais espaços educacionais vão atuar em localidades ditas populares, pois estas sofrem com a deficiência do ensino público e também são periferizadas por todo um constructo social que as afasta, geográfica e socialmente, já que não as considera capazes de pertencer a este corpus de nível elevado que é a sociedade “normal”. Discordando deste raciocínio, os cursinhos populares percebem que é necessário desconstruir esta lógica para mostrar aos “excluídos” que, com trabalho, conscientização e uma perspectiva emancipatória, pode-se reverter o quadro. Mas, quais seriam os obstáculos impostos por este status quo do ensino/sociedade normal para afastar os ditos incapacitados?

O próprio afastamento social já é um deles. A lógica meritocrática (ARANDA et all, 2006), que apresenta somente os melhores como os escolhidos para prosseguir nesta sociedade ideal, não leva em conta que estes “melhores” só alcançam seus méritos pelo acesso a recursos e possibilidades que os “piores” não têm. Lembrando que estes obstáculos também se encontram no interior do indivíduo excluído, já que o mesmo, se questionado, irá corroborar a teoria de que, somente aqueles que são “bons”, têm acesso aos melhores salários, aos melhores empregos. Este raciocínio, como já foi expresso, precisa ser revisto e modificado, tendo em vista que, estes recursos e possibilidades foram garantidos mais para alguns e menos para outros, em virtude de um processo histórico-social que construiu uma divisão destas possibilidades, relegando grande parte do bolo a uma minoria privilegiada.

Por conseguinte, os cursinhos populares e os agentes que os constroem e dão vida, estabelecem linhas de trabalho para que se possa eliminar esta lógica de inferiorização e proporcionar, por meio das vias do conhecimento e da conscientização, maneiras para se desprender desta perspectiva de hierarquização social.

Este processo será perpassado, primeiramente, apoiado em algumas das palavras de Paulo Freire, pela adoção de uma perspectiva crítica e emancipatória da educação, o que, num momento inicial será assimilado pelos professores, e gradativamente, pelos alunos, pois que, todo este movimento irá se calcar numa relação dialética entre professor e aluno, um ensinando, aprende e o outro, aprendendo, ensina. Enfim, não há docência sem discência, pois só poderemos ensinar aquilo que aprendemos (FREIRE, 1996).

Dessa forma, sabemos que o espaço popular se faz com o auxílio de muitas mãos. Mas, então, como formar-se educador popular? Quais os requisitos para desempenhar com êxito tal função?

Jean Piaget e Henri Wallon admitem, contrários a alguns filósofos clássicos (Platão, Descartes, Kant), que a docência precisa unir harmoniosamente razão e emoção, visto que o ser humano é composto desses dois elementos. Assim, “não existe conhecimento puramente afetivo ou puramente cognitivo. Quem produz conhecimento é um ser humano, um ser de racionalidade e de afetividade” (GADOTTI, 2007, p. 57).

Sendo o afetivo e o cognitivo inseparáveis, o educador do cursinho popular deve se dispor a compreender a realidade na qual estão inseridos os educandos, escrevendo sua prática de modo a aliar o conhecimento racional à amorosidade necessária. Do mesmo modo, ele não pode ser intocável, inacessível; precisa estar disposto a se relacionar, a adentrar no universo de seus alunos, a perceber suas necessidades e expectativas – as quais possivelmente os diferenciam de outros grupos de pré-universitários advindos de classes não populares.

Importante também que o educador não adote perante o grupo uma postura “paternalista”, visto que essa atitude é autoritária e vai contra a autonomia individual do cidadão. Frente às dificuldades encontradas, e aos limites claramente existentes na educação, temos em mente que, “não podendo tudo, a prática educativa pode alguma coisa” (FREIRE apud GADOTTI, 2007, p. 34). Seguindo o pensamento de Gadotti, a educação conscientizadora é crítica e prioriza o diálogo, o respeito e o amor, a criação e a recriação, a partir das situações-problema retiradas da realidade do educando.

Com base nessa discussão, passaremos a refletir acerca das experiências da prática pedagógica no cursinho, buscando possíveis respostas às inquietações cotidianas.



Experiências em sala de aula: entre o vivido e o pensado


Os fragmentos tirados do diário de campo dão lugar, nesses ensaios, a enredos e encenações montados explicitamente para dialogar com idéias existentes – tanto no senso comum quanto na comunidade científica [...] (FONSECA, 2004, p. 7).



O movimento de nos pensarmos como educadores do cursinho popular encontra nos diários de campo um espaço privilegiado de sistematização e de tomada de consciência das lacunas e desafios que o nosso trabalho em sala de aula apresenta. Por isso, os relatos acompanham nosso fazer docente, resultado direto do planejamento e execução das aulas.

Esse movimento entre o vivido e o pensado, entre a experiência e seu relato, entre o planejado e o executado, nos remete à práxis, onde teoria e prática estão em relação sinérgica. Fora desse movimento, poderíamos formular “hipóteses de gabinete” ou nos perdermos na materialidade da prática não refletida. Nesse sentido, “a reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática, ativismo” (FREIRE, 1996, p. 22).

Cada educador ficou incumbido de registrar suas aulas, tentando mostrar toda a realidade de acertos e erros que formam o seu universo docente. Nossa idéia seria fomentar dois momentos: um particular, onde o professor reflexivo se encontra consigo no tensionamento de sua prática com seus pressupostos epistemológicos e didáticos, e um coletivo, no qual as experiências seriam socializadas no grupo de pesquisa, objetivando a troca de idéias e o crescimento conjunto de um “espírito” de trabalho.

Dessa forma, a partir de constante diálogo acerca do desafio de ser educador, ainda aluno universitário, percebemos que cada experiência é única em seus significados e descobertas, uma vez que nossas caminhadas na vida e na academia são diferentes e que


a docência é uma atividade baseada em perguntas. Por isso não é uma atividade rotineira. Cada dia é uma surpresa. Cada dia o ser humano é diferente. Não entramos duas vezes na mesma classe, como diria Heráclito (GADOTTI, 2007, p.55).



Contudo, alguns aspectos parecem indicar que não estamos sozinhos em nossas angústias, pois falamos de um lugar comum: somos estudantes de origem popular e educadores do cursinho popular da Restinga.

A partir dessas aproximações, ensaiamos a criação de duas categorias básicas para a nossa análise: 1) o movimento permanente de planejamento das aulas e 2) a questão da heterogeneidade (relação da parte com o todo) da turma de alunos. O pano de fundo das experiências relatadas se constitui de duas partes: o ambiente do estudante de origem popular (bolsista) na universidade e a realidade da Restinga.

Em relação ao planejamento das aulas, consideramos que nessa categoria alguns aspectos estão presentes, podendo ser resumidos em três: a) conhecimentos técnicos de cada área, pois, conforme já assinalado, só poderemos ensinar aquilo que sabemos, b) orientação pedagógica e didática – estratégias de aula/metodologia de ensino e c) consideração da realidade (sócio-econômica e afetiva) dos alunos, ou seja, o desafio de construirmos aulas dotadas de sentido.

Diante do silêncio profundo que paira no ar, durante grande parte das explicações dadas, resta-nos a dúvida sobre o que realmente os educandos estão absorvendo. Mesmo quando são incitados a refletir sobre o processo de escrita em suas vidas, parecem não ter uma reação muito diferente, talvez por que não pratiquem regularmente tal processo e/ou simplesmente não o reconheçam como importante parta suas vidas. Este episódio (dentre outros) nos faz (re)pensar nosso planejamento (tendo que adaptá-lo à realidade encontrada), assim como faz perceber o abismo existente entre teoria e prática.

Mas como mudar a pratica sem mudar a teoria? Não esqueçamos que apesar de ser popular, este ainda é um curso pré-vestibular e, portanto, não pode, nem deve, deixar de priorizar a imensa lista dos conteúdos programados. O problema maior é que, um cursinho (mercadológico), tem a tarefa de apenas rever os conteúdos (teoricamente já estudados/vistos nos bancos escolares); enquanto no nosso, ao nos depararmos com o tamanho de defasagem apresentada, não há como “tocar a matéria”, temos de re-ensinar o que já deveria ter sido aprendido, mas não fora, fazendo ainda uma seleção de conteúdos “mais importantes” (cobrados no vestibular), já que o tempo (ou a falta dele) não nos permitirá trabalhar todos.

Para manter seu propósito de ensinar determinado conteúdo, o professor deve trocar de estratégias de aula muitas vezes, por exemplo, sabendo que a matemática é o “bicho papão” para a maioria dos estudantes, podemos/devemos fazer certas “brincadeirinhas” e comparações com o cotidiano para tornar a aula mais rica e envolver mais alunos nas atividades.

Entendendo que o papel do educador popular também é ser “psicólogo particular”, buscando entender o contexto em que está inserido cada aluno e a turma como um todo, ao fazer isto, pode-se sair de cada aula com a sensação do dever cumprido, de mais uma aula dada e mais mentes que se abrem para nova idéias e entusiasmos, não só pela proximidade do vestibular e de uma possível aprovação, que é a meta maior de nossas aulas, mas para a vida.

Embora o educador faça um plano de aula “rendondinho”, que a seu ver seria “infalível” (claro, se os educandos “cumprirem a sua parte”, fazendo os exercícios propostos na aula e também em casa), e execução pode nos colocar diante do fato de eles não cumprirem este “acordo”. Aprendemos que isso não deve desmotivar o professor, mas, ao contrário, deve fazê-lo refletir sobre sua prática e adaptá-la ao grupo de alunos.

Outro efeito causado pelo silêncio dos alunos é que assim o professor transforma-se no centro da atenção deles e talvez isso sugira “poder”, mas não o poder de doutriná-los, nem de direcioná-los a um caminho ou outro, sem discussão. Mas, como a educação implica também em posicionamento (tanto por parte dos alunos, como dos professores), deve o professor assumir responsabilidades por aquilo que está fazendo em sala de aula, mas no sentido de chamar os alunos a ocuparem um espaço de protagonistas no cursinho.

Antes de iniciar o trabalho com uma disciplina escolar - até para não causar um choque nos alunos, nem desmotivar o professor – é recomendado que se faça uma sondagem na turma (pode ser através de uma conversa informal, de um questionário, etc), a fim de verificar os conhecimentos prévios que eles possuem, para então traçar um plano de aula e estratégias. Senão, como avaliá-los? Se não soubermos o que eles já sabiam, como avaliaremos o que realmente aprenderam, ou melhor, o seu processo de aprendizagem?

Seguindo os princípios progressistas da educação popular, em que o educador não apenas transmite (deposita) os conteúdos nos cérebros (“vazios”) dos educandos, torna-se importante a construção conjunta do conhecimento. Neste processo, o educador tenta – a partir da valorização dos conhecimentos prévios dos educandos – instigar o raciocínio dos mesmos, de modo que cheguem “sozinhos” às conclusões pretendidas/esperadas pelo educador/orientador - ou a outras quaisquer, não previstas por ele. Então, quando ocorre esta última hipótese, fica provado que o conhecimento não é algo fixo, pronto, nem imutável, mas que está sempre em construção, pois “se aprende ensinando e se ensina aprendendo”.

Salienta-se ainda que, neste processo de construção do conhecimento, é importante valorizar cada “pequeno acerto” do aluno, para que este incentivo lhe sirva de estímulo para seguir “pensando” e expondo seus pensamentos, elevando assim sua auto-estima, que via de regra, é bastante baixa. E, se ocorrer algum “erro”, não deve-se simplesmente apontá-lo, mas questionar o aluno sobre como chegou àquela conclusão, e a partir daí, tentar mostrar-lhe raciocínio correto do ponto de vista teórico/conceitual.

A questão da heterogeneidade, por suas vez, indica o nosso desafio de trabalharmos com um grupo de alunos com históricos escolares diferentes e, portanto, com tempos e exigências diferenciadas.

Quantas vezes planejamos felizes nossas aulas e, chegando em sala de aula, percebemos que não podemos seguir esse plano, por que os alunos não têm nenhuma base sobre determinado conteúdo escolar, ou simplesmente pelo fato de eles não terem revisado e estudado a aula anterior. Essa falta de conteúdo, de tempo e muitas vezes de interesse influencia cada aula preparada, mas no meio de tudo isso nunca podemos esquecer que o objetivo deles é passar no vestibular.

Todos nós temos uma vida particular, temos nossos medos, nossos anseios e nossas fraquezas, mas no momento em que se trabalha com muitas pessoas ao mesmo tempo, essas diferenças afloram e cabe a ele, o professor, criar bases de apoio e entrar no mundo de seus alunos e com isso sempre tentar trazê-los para o mundo “cursinho”, para a sala de aula, para o vestibular, que mesmo não sendo como queríamos, é o motivo de estarmos todos ali, assim como cabe a ele entusiasmar seus alunos a ponto de os fazerem esquecer o cansaço de um dia todo de trabalho e o filho que, muitas vezes, esta em casa o esperando.

Diante disso cabe também ao professor, trazer propostas de ensino que se aproxime do meio em que eles vivem, não sendo “paternal”, passando a mão na cabeça deles por não fazerem uma tarefa pedida, mas tentar entender essas “carinhas assustadas e de pavor” diante do assunto trabalhado. Sabemos que, muitas vezes, fica difícil saber o que estão pensando, onde estão as dúvidas que se acumulam para quem é mais retraído e não se expõe em sala de aula, talvez por medo de ser ridicularizado ou medo de confessar não saber. Ao mesmo tempo, o rendimento da turma vai se formando ao longo dos nossos encontros, onde trabalhamos no sentido da criação de um espírito de solidariedade, onde todos e todas possam construir uma rede de apoio mútuo.

A partir dessa heterogeneidade, o professor deve tentar apresentar o conteúdo de modo que tantos os alunos mais participativos quanto os menos entendam o conteúdo planejado. É muito comum acontecer dos alunos mais novos absorverem o conteúdo mais rapidamente, por isso é preciso ter paciência e tentar fazer com que toda a turma tenha o mesmo ritmo de aprendizagem. Assim como é esperado que os alunos mais velhos disponham de menos tempo para estudar em casa, em relação aos mais novos sustentados pelos pais e que podem apenas estudar.

Em geral, os alunos que estavam há muito tempo sem estudar, já perderam o hábito de dedicar um tempo durante a semana para o estudo, pois isso exige disciplina e concentração. Às vezes acham que somente irem à aula é suficiente para se prepararem para o vestibular, e é por isso que devemos trabalhar com a parte psicológica da cultura e do hábito do estudo. É importante tentar fazer com que eles reservem um tempo para o estudo em meio as suas tantas tarefas e responsabilidades, para que possam acompanhar o andamento do curso de modo operacional, ou seja, fazendo os trabalhos pedidos pelos professores, as listas de exercícios, as leituras, etc.

Dessa maneira, os professores do cursinho, buscam sanar ao menos uma parte dessa carência, tanto psicológica quanto pedagógica, com aulas que buscam proporcionar, por meio de metodologias diferenciadas, esperança a seus alunos e mostrar que para entrar na faculdade, para passar no vestibular, é preciso muito esforço e rotina de estudos. Falamos isso de um lugar (universidade) que batalhamos muito para estar e que queremos muito a companhia de pessoas como eles/nós.


Considerações Finais


Assim como Paulo Freire, entendemos que a educação de caráter popular não pode ser realizada para o povo, mas sim com o povo. Por isto, o processo de ensinar e aprender é um tarefa complexa, principalmente quando nos referimos às camadas desfavorecidas historicamente. No caso de um ensino tendo em vista a preparação para o vestibular, este aspecto se mostra concretamente, pois o caráter elitista da seleção para um ensino superior público e de qualidade poderia impedir que este tipo de educação fosse viável.

Mas não viemos até aqui para desistir agora. A tarefa se torna motivante quando temos em vista o objetivo referido acima somado a uma educação que faça algum sentido na realidade destas pessoas. Alguns passos podem ser dados sem medo, visto que o próprio caráter do processo de aprendizagem é inacabado.

Vimos que a relação entre ensino e pesquisa realizada pelo próprio docente tendo em vista a melhoria da sua prática é um ponto importante na construção de uma proposta pedagógica emancipatória. As concepções de educação popular podem ser melhor apreendidas por nós, professores iniciantes e também alunos, através destas reflexões sobre os acontecimento em sala de aula. A busca por um ensino que esteja lado a lado com as dúvidas e anseios destes alunos faz com que as nossas próprias dúvidas e anseios venham à tona e se tornem objetos de reflexão.

No caso das nossas discussões sobre a prática em sala de aula, vimos as questões que se tornaram mais freqüentes entre os professores: a heterogeneidade dos alunos e o planejamento em constante revisão. Estes dois aspectos, que não se excluem e carregam outras questões implícitas, nos mostraram o quanto as aulas em um cursinho pré-vestibular popular podem ser carregadas de problematizações e possibilidades de melhorias. Tendo em vista isso, o significado das nossas ações no Esperança Popular Restinga podem ser entendidas como uma constante caminhada, o que não faz dos erros uma tragédia, mas sim desafios que impulsionam a continuidade deste trabalho.

Assim, o que poderia ser um peso se torna movimento. O que poderia ser medo se torna esperança. Aprendemos a dividir estes anseios e a aprender mais. Não é este o objetivo da educação popular? O diálogo e a troca. Nada mal, aprendemos com eles e aprendemos conosco.



Referências


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PEREIRA, T. I. Pré-Vestibulares Populares em Porto Alegre: na fronteira entre o público e o privado. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Educação/UFRGS. Porto Alegre, 2007.


SILVA, J. S. “Por Que Uns e Não Outros?”: caminhada de jovens pobres para a universidade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2003.

1 Professora de Português/Espanhol do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, estudante de Letras (UFRGS) e Bolsista do Conexões de Saberes/UFRGS.

2 Professora de Biologia do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, estudante de Medicina Veterinária (UFRGS) e Bolsista do Conexões de Saberes/UFRGS.

3 Professor de História do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, estudante de História (UFRGS) e Bolsista do Conexões de Saberes/UFRGS.

4 Professora de Matemática do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, estudante de Matemática (UFRGS) e Bolsista do Conexões de Saberes/UFRGS.

5 Professora de Matemática do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, estudante de Matemática (UFRGS) e Bolsista do Conexões de Saberes/UFRGS.

6 Professor de Física do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, estudante de Física (UFRGS) e Bolsista do Conexões de Saberes/UFRGS.

7 Professor de Redação/Inglês do Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga, estudante de Letras (UFRGS) e Bolsista do Conexões de Saberes/UFRGS.

8 Sociólogo, Mestre em Educação (PPGEdu/UFRGS) e Orientador do Território Curso Pré-Vestibular Esperança Popular Restinga junto ao Conexões de Saberes/UFRGS.

9 Segundo dados do INEP (2007), cerca de 12% dos jovens entre 18 e 24 anos chega ao ensino superior no Brasil, número que varia entre as regiões do país.

10 As palavras Professor/Educador e Aluno/Educando são utilizadas neste texto com o mesmo sentido.

11 Destacamos a presença de Helena Bonetto, ex-bolsista do Conexões de Saberes – UFRGS e Professora de Sociologia do cursinho, na construção deste texto e na organização e manutenção do Esperança Popular Restinga.

12 O bairro Restinga é muito conhecido em Porto Alegre pela sua grande distância em relação ao centro da cidade e como um “bairro violento”, proveniente das estatísticas policiais, mas, sobretudo, de grande preconceito. Muitos projetos sociais atuam no bairro, seja por meio da extensão universitária, ONGs ou ainda atividades desenvolvidas pelos próprios moradores, como o Comitê de Resistência Popular.

13 Ser morador do bairro, ter estudado em escola pública e ter renda per capta de até um salário mínimo nacional.

14 Caracterização pejorativa relacionada aos moradores da Restinga.

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